Dois anos atrás, ainda como estudante de medicina veterinária do CAV/UDESC em Lages-Santa Catarina, tive a oportunidade de vivenciar um estágio de um ano em uma fazenda leiteira na Alemanha, onde aprendi processos e manejos de como se produzir leite no sistema de confinamento free-stall. Passados dois anos, agora formado como médico veterinário, surge a oportunidade de desenvolver ainda mais a minha carreira na área, dessa vez um pouco mais isolado do resto do mundo, em um país aonde a indústria leiteira é uma das atividades mais importantes, se não a mais significativa da economia local.
No ano de 2017 o leite contribuiu com 35% das exportações de produtos primários da Nova Zelândia, gerando uma receita de 13,4 bilhões de dólares, empregando 50.000 mil pessoas (34.000 em fazendas e 16.000 na indústria), contribuindo fortemente com o PIB interno, gerando riqueza e emprego para a população local.
A Nova Zelândia é a maior exportadora de derivados lácteos do mundo, produzindo 3% do volume total de leite do planeta. Seu isolamento geográfico protege seu rebanho de doenças; sua condição climática perfeita, seu solo extremamente fértil, abundância de água e tecnologia aliados à ORGANIZAÇÃO fazem dela o local ideal para se produzir leite.
No ano de 2001 toda a cadeia leiteira do país foi reestruturada através de um ato público que trouxe diretrizes relacionadas a sustentabilidade, bem-estar animal, políticas de mercado interno, enfim, tudo o que engloba o know-how da indústria leiteira está nesse arquivo, o qual está disponível online para consulta (Dairy industry restructuring act 2001).
Se tem três tópicos que eu escolheria para definir a produção de leite na terra dos kiwis, são VOLUME, TECNOLOGIA e ESTRUTURA OPERACIONAL. A primeira é facilmente explicada pelo tamanho dos rebanhos que encontramos por aqui. Cinquenta por cento das fazendas possuem de 100 a 350 animais, 30% possuem 500 vacas ou mais, 12% apresentam 750 vacas e 5% mais de 1000 animais. Além disso, nos últimos anos o número de fazendas com rebanhos maiores que 400 vacas vêm aumentando, provando a aptidão kiwi por volume de produção.
O tópico tecnologia eu subdividiria ainda em mais dois sub tópicos, sistema de irrigação e melhoramento genético, os quais aliados aumentam significativamente a eficiência de todo o sistema leiteiro. Na Nova Zelândia, 800.000 mil hectares são irrigados, otimizando o crescimento de pasto para todos os tipos de cultura, leite, carne de gado e ovelha.
Os dois principais sistemas de irrigação aqui utilizados são o sistema pivot e o sistema K-line. O primeiro é 100% automatizado e requer altos investimentos que retornam apenas ao longo prazo, mas, no entanto, traz comodidade, durabilidade e garantia de eficiência de irrigação, convertendo investimento em aumento do volume de comida para os animais, que no final das contas reverterá em maior volume de produção de leite e melhora da remuneração do produtor.
Já o sistema K-line é muito mais barato, menos duradouro e exige algumas horas de manejo diário, precisando ser movimentado de acordo com o crescimento de pasto no piquete. Ou seja, na hora de optar pelo sistema de irrigação ideal para sua fazenda, capacidade de investimento do produtor e disponibilidade de mão de obra devem ser levados em consideração.
O melhoramento genético neozelandês é feito pela cooperativa LIC (Livestock Improvement Corporation), que é mantida por mais de 10.000 fazendeiros, prestando serviços de venda de sêmen fresco e congelado, inseminação, diagnóstico de prenhês, implementação de tecnologias e assistência técnica.
A cada quatro animais inseminados na Nova Zelândia, em três é usado sêmen de touros da LIC. Mais de 5 milhões de doses de sêmen foram comercializadas pela cooperativa somente em 2017 e mais de 800.000 mil animas tiveram análise de DNA feita para diagnóstico de doenças e teste de mérito genético.
Ela possui ainda um banco de dados de mais de 90% dos animais inseminados, fazendo com que o melhoramento genético seja uniforme em todo o país, gerando dados estatísticos e números reais do que tem sido feito até o momento.
O cruzamento mais utilizado nos últimos anos é do holandês (holstein-friesian) com animais da raça Jersey, originando o “kiwi-cross”. Essa cruza explora o rigor híbrido das duas raças, ou seja, a superioridade dos filhos em relação aos pais, gerando animais ótimos em conversão de pasto em leite, longevos, férteis, resistentes a doenças, produzindo mais proteína e gordura no leite que o holandês e, ao mesmo tempo, mais volume de leite que o Jersey.
Outra ferramenta que eu considero inovadora e diferenciada é o chamado “herd testing” ou teste de rebanho, o qual permite que os fazendeiros obtenham informações individuais de cada animal do seu plantel, auxiliando na hora da tomada de decisão em relação a manutenção ou não da vaca na próxima lactação. Há duas companhias que realizam o herd testing por aqui, a CRV e a LIC, ficando a cargo do produtor de quando e com qual frequência realiza-lo.
Basicamente é coletado duas amostras de leite em dias separados e enviados para o laboratório das respectivas empresas. Os resultados saem em questão de dias, trazendo informações de volume de leite, teor de sólidos, contagem de células somáticas, contagem bacteriana, monitoramento de mastite clínica e subclínica, identificação de vacas improdutivas, bem como de vacas altamente produtivas que são de interesse para reprodução. Só no ano de 2017, 3,2 milhões de vacas passaram pelo herd testing, representando 65% do rebanho kiwi, provando que tecnologia, eficiência e volume podem, sim, andar juntos dentro da propriedade.
Outra característica que eu considero peculiar do sistema de produção leiteiro kiwi é o sistema operacional das fazendas. As propriedades são operadas por três sistemas diferentes: “owner-operator,” sharemilking” e ainda “contract milker”.
O primeiro são fazendeiros que são donos da própria terra, dos insumos, dos animais, das instalações e contratam um gerente e uma equipe para tocar as atividades, recebendo 100% da receita bruta. No entanto, arcam com 100% dos custos de produção. Essa categoria representa 72% de todas as fazendas da Nova Zelândia.
O segundo sistema, sharemilking, funciona da seguinte forma: o “sharemilker” opera a fazenda como se fosse o proprietário das terras; no entanto, não é. Ele acorda com real dono uma porcentagem dos lucros, utilizando toda a estrutura já pré-estabelecida (instalações, rebanho, maquinário, pastagens, sistema de irrigação), funcionando como se fosse um aluguel, sendo os lucros divididos entre o sharemilker e o real dono. O modelo de contrato mais comum é o 50/50%, onde o sharemilker arca com os custos de produção e salários dos funcionários e o lucro provém da venda da metade do volume do leite produzido mais a venda de animais excedentes (terneiros, novilhas e vacas), enquanto o dono arca com custos de manutenção da propriedade e seus lucros são oriundos dos 50% restantes do volume de produção mais o excedente de leite produzido no mês.
Esse sistema é altamente conveniente para um proprietário idoso que não quer mais se incomodar com o estresse de se produzir leite e não possui herdeiros para deixar a terra e ao mesmo tempo é muito vantajoso para um jovem motivado que quer dar o próximo passo na carreira, mas não possui condições de adquirir a terra, tornando-se um sistema de simbiose, onde todos saem ganhando. Esse sistema faz parte do plano de carreira das fazendas criado na nova Zelândia, onde um simples assistente de fazenda um dia pode vir a se tornar um competente sharemilker, dependendo apenas de sua própria força de vontade, conhecimento e experiência adquirida.
O terceiro e último sistema é o contract milker, o qual funciona da seguinte forma: uma pessoa é contratada pelo dono da terra para produzir leite, recebendo uma remuneração de acordo com o montante de quilogramas de sólidos de leite produzidos, não arcando com custos de produção, nem com investimentos na propriedade.
De todas as fazendas, 73% delas são operadas no sistema owner-operator, 27% sharemilking e o restante ficando a cargo dos contract milkers.
A Nova Zelândia tornou a produção leiteira em uma indústria altamente atrativa, fazendo com que muitos jovens se interessem por ela. Há pessoas dos quatro cantos do mundo trabalhando nas fazendas, tods compartilhando o sonho de desenvolver uma carreira digna, com salários justos e perspectiva clara de crescimento, as quais é difícil se se obter em seus países de origem, pois a indústria leiteira em outros locais ainda vive no regime tradicional familiar, no qual você é fazendeiro ou peão, não permitindo que o peão vire um dia o fazendeiro.
Para se ter uma perspectiva do quão grande e importante é o segmento leiteiro para os kiwis apresento alguns números de produção referentes ao ano de 2016 e 2017, que deixam claro para o leitor que leite por aqui é coisa séria e um mercado em plena expansão. Nas duas últimas temporadas, o tamanho do rebanho total era de 4,9 milhões de vacas, para uma população 4,8 milhões de pessoas, ou seja, cada habitante poderia possuir uma vaca em casa para consumo de leite fresco diário.
A ilha norte possui 73% dos animais, ficando o restante localizado na ilha sul. São 1,7 milhões de hectares destinados exclusivamente à produção de leite, com uma densidade média de 2,8 vacas por hectare de terra e cada propriedade com um tamanho médio de 147 hectares, cada vaca produzindo uma média de 15 litros/dia, totalizando em média 2900 litros/ano, para um período de lactação de 255 dias.
Esses 15 litros por dia podem até parecer baixos se compararmos com outras realidades mundo a fora, até mesmo a brasileira, mas é válido ressaltar que a base da alimentação aqui é pasto, as vacas caminham longas distâncias para serem ordenhadas, o uso do concentrado é mínimo ou nulo e os animais sofrem com a variação climática ao longo do dia, ou seja, baixo custo, efetividade e produção de pasto são as premissas do sistema.
As leiterias espalhadas pelas duas ilhas processaram 21 bilhões de litros de leite e 1.8 bilhões Kg de sólidos em 2016/2017, transformando matéria prima em leite em pó (37%), leite UHT (21%), queijo (12%) e manteiga (9%), exportando 95% dos seus derivados para mais de 100 mercados espalhados pelo mundo, sendo os principais clientes China, Estados unidos, Emirados Árabes, Austrália e Japão.
O leite é a principal fonte de proteína consumida no mundo e cada vez mais o mercado consumidor vem aumentando a pressão para se produzir de forma sustentável e eficiente. A Nova Zelândia está aí para nos mostrar que eficiência produtiva, gestão de recursos naturais e gestão de pessoas devem estar alinhados, buscando maximizar os ganhos para quem produz, para quem trabalha, para quem processa e para quem consome esse nobre alimento tão importante em nossas vidas. Viva o leite!
Fonte: www.milkpoint.com.br